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OBJECTIVOS

Estes textos são uma mera justificação de gosto, dirigida em primeiro lugar aos amigos, e não são crítica de cinema, muito menos de teatro ou arte em geral... Nos últimos tempos são maioritariamente meros comentários que fiz, publicados principalmente no facebook ou no correio electrónico, sempre a pensar em primeiro lugar nos amigos que eventualmente os leiam.
Gostaria muito de re-escrever os textos, aprofundando as opiniões, mas o tempo vai-me faltando...
As minhas estrelas (de 1 a 5), quando as houver, apenas representam o meu gosto em relação à obra em causa, e nunca uma apreciação global da sua qualidade, para a qual não me sinto com competência, além da subjectividade inerente. Gostaria de ver tudo o que vale a pena, mas também não tenho tempo...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

TERRA DE NINGUÉM, de Salomé Lamas



Antes de ir ver o ELDORADO XXI, a segunda longa-metragem da Salomé Lamas e o filme actualmente em exibição dos que me interessam muito que ainda não vi, aqui fica uma pequena nota escrita a quando da exibição da sua primeira longa-metragem. 
A propósito, quanto aos hiper propagandeados "la-la" hesito em gastar o meu pouco tempo. É que gosto demasiado dos grandes clássicos do Musical...



TERRA DE NINGUÉM, de SALOMÉ LAMAS

1-Já vi e achei interessante, também sob o aspecto da linguagem, o muito aplaudido "Terra de Ninguém", documentário da jovem realizadora, Salomé Lamas (na foto), primeiro prémio do DOCLIS de 2012. 

Curiosamente assisti sozinho, numa sala completamente vazia dum multiplex, num horário nobre. Disse-me o pessoal de serviço que, em sessões anteriores, alguns espectadores abandonaram a sala ao intervalo

Porque a obra é incómoda? Não sei. É a entrevista a um mercenário e assassino, nas próprias palavras do retratado. 

Mas merece uma reflexão, pelo que revela aos menos informados, que o são por ignorância, por preconceito, às vezes por desmazelo, sobre a realidade que os cerca - os crimes contra a Humanidade cometidos pelas tropas ocupantes na Guerra Colonial Portuguesa, os atentados encomendados pela CIA na América do Sul, cujo objectivo era o terror, por isso tinham também por vezes por alvos os próprios apoiantes, os atentados dos GAL, em Espanha, encomendados durante o governo de Felipe Gonzalez. As seguranças de Kaulza e Sá Carneiro, de que o entrevistado fez parte.

E obviamente para tentarmos perceber o que pode levar um ser humano a um trajecto de vida como este, que em fase terminal o transforma num sem-abrigo, debaixo de um viaduto qualquer de uma grande urbe (Lisboa).

2-Uma longa entrevista a um mercenário e assassino, como ele próprio se define, admitindo que tudo o que conta é verdade. E pelos piores motivos, o que ele já não consegue admitir. 

O Homem pode transformar-se num ser violento, sem piedade, por motivos vários. E ninguém estará à partida, livre disso. 

O ódio, em primeiro lugar. O instinto de defesa em segundo lugar. E também o pode, por pensar que está do lado dos que têm razão, porque lhe disseram que os outros são “maus”. 

O personagem deste documentário quer justificar-se assim. É que passou de soldado, voluntário é certo, mas integrado num exército regular, em guerra, injusta é certo, para alguém que é pago para combater e matar sem escrúpulos. Em ambos os casos actuou com selvajaria. Parece que na sua cabeça não existiram muitas dúvidas, segundo diz. Será talvez essa a justificação que julgam possível, os que participaram em massacres e crimes contra populações indefesas durante as Guerras Coloniais. E infelizmente já ouvi justificações semelhantes, que me impressionaram.

No entanto ele terminará a sua atribulada existência como sem-abrigo, depois de preso e condenado a 15 anos, em Espanha, por um único crime entre as centenas (?) de assassinatos que terá cometido, como soldado e mercenário, sempre do lado das forças de repressão, dos poderosos, contra os que lutaram pela liberdade dos seus povos, ou depois, como assassino contratado para matar, ainda pelos mesmos poderes (episódio dos GAL, criados durante o governo de Felipe Gonzalez, contra a ETA). E depois de ter sido segurança de Kaulza de Arriaga e de Sá Carneiro, segundo diz... Como se deixasse de ser útil para os que o utilizaram. 

Um dos paradoxos desta existência seria o de, a acreditar no que ele conta, ele ter afinal alguma ética, já que, mesmo sendo capaz de matar sem pena nem remorso e cometendo as maiores barbaridades, na África Colonial Portuguesa ou em Salvador. (lembrar a propósito o impressionante e magnífico “Romero”, de John Duigan, na altura em que membros da “Igreja dos Pobres” apoiavam a guerrilha (Arcebispo Romero), filme que é a visão do outro lado da barricada, do lado das populações em luta contra a miséria, contra a fome, contra a repressão dos poderosos, relembrando a morte da guerrilheira, eventualmente assassinada por gente como este mercenário português ao serviço da CIA, segundo ele diz) 

Ética por se recusar a matar os familiares das suas vítimas, mas só como assassino contratado, porque nas guerras, coloniais principalmente, velhos, mulheres e crianças eram abatidas também (Angola). O racismo também pesaria aí? 

O que impressiona no filme de Salomé Lamas é a magnífica encenação, aparentemente muito económica de meios, e muito directa, que a jovem realizadora criou para a entrevista. A ideia também de cortar as perguntas, substituindo-as por um número, sequencial, que separa as respostas. Nunca ouvimos a voz de quem pergunta. Apenas breves comentários, da própria Salomé, entre cada um dos 5 ou 6 episódios, temporalmente bem definidos, que constituem o documentário. Esta forma acaba por nos ligar mais ao entrevistado e nos fazer quase acreditar que se trata afinal de um ser humano igual a muitos outros, com algumas fragilidades, com todas as suas limitações e contradições (a infância, feliz, em África). Nisso a obra está de facto muito conseguida.

Os que defendem o filme referem-se obviamente a este aspecto e também ao facto dele acabar por mostrar que a Guerra Colonial, feita pelo governo português, foi muito mais cruel do que as versões oficiais, ainda hoje, querem fazer crer. É que não ignora os selváticos massacres cometidos pelas tropas coloniais, as aldeias queimadas, e as suas populações inteiras dizimadas, e as cabeças cortadas penduradas como troféus, nos cintos ou nas viaturas. Em Wiriamu, Nambuangongo ou noutro local qualquer. 

Embora julgo que não foi esse objectivo principal de Salomé. Mostrar sim as contradições do ser humano. Que parece, em certas ocasiões, capaz de sentimentos vulgares, solidários até (a cena final dos sem-abrigo, debaixo da ponte) e ao mesmo tempo capaz de se deixar levar pelo ódio, pela irracionalidade, pelo interesse (o dinheiro – o episódio de Monte Carlo) e cometer com indiferença as maiores atrocidades contra os seus semelhantes.

A justificação de um criminoso? Julgo que não. Antes um olhar para os que caem para o outro lado da barricada, por falta de inteligência e depois, utilizados, já não poderão regressar...







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