Cultura!

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OBJECTIVOS

Estes textos são uma mera justificação de gosto, dirigida em primeiro lugar aos amigos, e não são crítica de cinema, muito menos de teatro ou arte em geral... Nos últimos tempos são maioritariamente meros comentários que fiz, publicados principalmente no facebook ou no correio electrónico, sempre a pensar em primeiro lugar nos amigos que eventualmente os leiam.
Gostaria muito de re-escrever os textos, aprofundando as opiniões, mas o tempo vai-me faltando...
As minhas estrelas (de 1 a 5), quando as houver, apenas representam o meu gosto em relação à obra em causa, e nunca uma apreciação global da sua qualidade, para a qual não me sinto com competência, além da subjectividade inerente. Gostaria de ver tudo o que vale a pena, mas também não tenho tempo...

quarta-feira, 23 de março de 2016

CLARABÓIA, de José Saramago, com encenação de Maria do Céu Guerra



A PROPÓSITO DE "CLARABÓIA"

José Saramago, um "escritor tardio" segundo alguns (posso rir?), teria pouco mais que trinta anos quando decidiu tentar publicar este que seria o seu primeiro romance, mas que um editor ignorante reteve na gaveta durante décadas (o original, dactilografado, estava exposto no átrio de A Barraca), e só voltando às mãos do escritor já ele havia recebido, em 1998, o Prémio Nobel da Literatura, acabando por ser, por decisão de Saramago, deixado para a posteridade. Felizmente que a Fundação e Pilar del Rio resolveram em boa hora publicar, apoiando também esta adaptação ao teatro.



Na sua aparente simplicidade estilística é um belíssimo romance que já faria antever, se tivesse conhecido então a luz do dia, o grande escritor em que Saramago se viria a tornar.



Através do microcosmos de um prédio urbano, com seis apartamentos, Saramago mostra-nos o que foram esses tempos sombrios em que viveu a sua juventude (e nós também) e de como o medo que o fascismo inculcou nas pessoas as tornou por vezes medíocres, quando não até capazes de malvadezas contra o seu semelhante, como a denúncia, quase sempre falsa, por mera vingança. Mas também de esperanças e anseios que nesses tempos obscuros dificilmente podiam singrar.






Quando ouço alguém afirmar que não consegue ultrapassar a complexidade do estilo de escrita de Saramago, em fase mais adiantada da sua obra, onde nos deu as suas grandes obras-primas e que tem como principal característica a ausência de pontuação explícita, não deixo de sorrir. É que a leitura atenta também exige esforço do leitor para compreender o que o escritor nos pretende contar. A verdade é que depois de interiorizado o estilo do escritor as suas obras se lêem de um fôlego e com grande prazer tal a sua intensidade (como de outros também enormes autores, como Faulkner, por exemplo). Confesso que "devorei" grande parte da obra do nosso Nobel. 



Obviamente que não podemos ignorar também a existência, em mentalidades retrógradas ou fundamentalistas, de preconceitos contra Saramago, baseados exclusivamente no facto de ele ter sido comunista a partir de muito jovem e continuando, em prova admirável de coerência e coragem, até ao fim dos seus dias. A esse respeito nunca será demais lembrar a perseguição que lhe foi movida por gente como o ex-presidente de triste memória, Cavaco Silva e de como este, quando primeiro-ministro, o tentou ostracizar e prejudicar, servindo-se do seu ministro Santana Lopes e de um peão político de nome Sousa Lara (este que viria a ficar ligado depois ao escândalo de corrupção da Universidade Moderna, que provocou o seu fecho definitivo e não mais que apenas algumas prisões...). Isto a propósito de um dos mais belos romances do nosso Nobel, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". 

Não tendo todavia conseguido evitar o reconhecimento universal do escritor que, finalmente, em 1998, recebeu o Prémio Nobel de Literatura, Cavaco viria a faltar vergonhosamente, como Presidente da República, às cerimónias públicas do funeral do nosso único Nobel a solo, que constituíram um grande momento de manifestação de apreço popular, principalmente entre a população alfabetizada.

Não ignoramos que este preconceito contra o nosso Nobel e principalmente contra a sua obra é no fundo um reflexo mais do ódio de classe dos poderosos (que os seus acólitos se aprestam a secundar - Cavaco) contra os que ousam lutar pela justiça social e pela liberdade.



Não pretendo alongar-me embora o romance e a sua adaptação teatral o merecessem. Fica para uma outra altura.

Gostaria, e muito, que os meus amigos (as) não deixassem de ver o espectáculo, chamando-lhes a atenção para meia dúzia de aspectos que a mim me tocaram especialmente.

As personagens que, em minha opinião, são as mais saramaguianas - o sapateiro Silvestre e a prostituta Lídia, destacando-se num plano moral e ético, e as extraordinárias interpretações dos respectivos actores (João Maria Pinto e Rita Lello). Embora deva dizer que para mim não houve falhas em todo este belíssimo elenco (até com uma estreia de todo inesperada, Hélder Costa!) e se torna obrigatória uma referência à sua encenadora, Maria do Céu Guerra, que também como actriz atinge o brilhantismo, em minha opinião, em duas personagens díspares. Relembrar especial a cena final de Lídia com a Mãe! Pena que alguns risos alvares entre alguns assistentes, revelando uma total incompreensão do que se passava em palco, tivessem acontecido no dia em que assisti ao espectáculo. Foram notas dissonantes numa sala cheia a transbordar que teve como remate final, depois de corrido o pano, nos surgirem na ribalta todos os actores, a falarem-nos de como tinham visto as suas personagens e trabalho. Foi um momento raro e inesquecível!


Claro que é impossível esquecer a beleza do cenário de José Costa Reis, imprescindível para permitir esta encenação, ao mostrar-nos o interior do prédio e os seus moradores. Esse facto torna este espectáculo único, quando visto na velhinha sala do Cinearte, que aliás atravessou praticamente toda a nossa existência, já um pouco longa, entre muito cinema e teatro.

(texto publicado na minha página do facebook, quando vi a peça, em 5-Mar)




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