Não percam o magnífico Cartas da Guerra, realizado por Ivo M. Ferreira, baseando-se nas cartas que o escritor António Lobo Antunes escreveu a sua mulher, enquanto esteve em Angola como oficial miliciano médico, de que são lidas ao longo da obra várias passagens, algumas belíssimas.
Sucedeu que passei a simpatizar mais com o ser humano Lobo Antunes depois de ter visto o filme, e as razões da minha por vezes pouca simpatia anterior, embora o considere um dos grandes escritores portugueses vivos, era o me parecer que manteve sempre muito forte um sentimento de classe, da grande burguesia, que justifica certas atitudes e alguma arrogância perante os que considera socialmente inferiores ou provindos de outra classe. Mas isso dilui-se um pouco pelo belíssimo retrato humano do jovem médico que o Ivo Ferreira nos deu.
O cinema português já nos tinha dado algumas obras notáveis sobre esse período trágico da vida portuguesa, com milhares de famílias destruídas, milhares de mortos, milhares de estropiados, a maior parte dos quais psicologicamente, na defesa dum império cuja manutenção nada podia justificar.
João Botelho, em "Um Amor Português" (1985), Margarida Cardoso, em "A Costa dos Murmúrios", adaptando Lídia Jorge (2004) e Joaquim Leitão, em "20, 13, Purgatório" (2006) são os que conheço e de que gostei muito.
Felizmente para nós, neste caso, não temos um Clint Eastwood que faça a apologia dos heróis sob um ponto de vista meramente conservador.
Muitos outros grandes realizadores portugueses, como Teresa Villaverde, fizeram breves referências à questão da guerra colonial e dos seus dramáticos efeitos sobre o povo português, mas sem a utilizarem como pano de fundo das suas obras.
O que a obra de Ivo Ferreira tem de muito especial é que sem esconder como foi errada e absolutamente condenável a tentativa do governo fascista português, de tentar abafar e depois combater os movimentos de Libertação dos Povos Colonizados, ele centra em meia dúzia de personagens um retrato quase intimista de muitos que viveram esse período (entre os quais me incluo) e nele, como o Lobo Antunes, ganharam consciência do que estava verdadeiramente em jogo.
Belíssima montagem, belíssima fotografia a preto e branco, muitas vezes em ambientes quase crepusculares.
Não queria terminar esta pequena nota sem lembrar os grandes autores literários, em minha opinião, deste período, porque o viveram e sofreram na carne, para além da Lídia Jorge e do João de Melo, que são o Mário Moutinho de Pádua ("No percurso das Guerras Coloniais", de 2011 e "Angola, os Anos Dourados do Colonialismo", de 2014), Armando Sousa Teixeira ("Guerra Colonial", de 2009) e Modesto Navarro ("Ir à Guerra", de 1974). Já os li todos e tenho vontade de voltar a eles.
OBS: os dois primeiros fotogramas são do filme, o último é da realidade dos anos 60, com futuros oficiais em descanso no intervalo de uma dura instrução
ADENDA
A APC - ACADEMIA PORTUGUESA DE CINEMA, propô-lo para os óscares hollywoodenses a atribuir em 2017, pela sua congénere norte-americana, na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira (isto é, que não é falado em inglês).
Pensando bem a escolha parece-me acertada, não só por não me lembrar de melhor filme português neste ano, como julgo que ele tem condições para ser votado favoravelmente pelos membros da Academia. É um belísimo filme, embora com algumas limitações, que reconheço, e que talvez sejam mais facilmente entendidas por nós, espectadores de língua portuguesa, mas confesso que gostei muito da obra.
É verdade que já concorremos com obras cinematograficamente superiores que foram ignoradas (Tabu, de Miguel Gomes, por exemplo) ou até as que foram sabotadas à partida, por razões políticas (à semelhança do acontecido na Literatura a José Saramago) pela instituição portuguesa que então as deveria indicar (o IPC - Instituto Português de Cinema, salvo erro) e o caso mais escandaloso foi o de uma obra-prima do saudoso José Fonseca e Costa, "Cinco Dias Cinco Noites", numa excepcional adaptação da belíssima novela homónima de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal), que julgo poderia ter efectivamente ganho, pela primeira vez no cinema português, esse prémio, atendendo aos nomeados nesse ano.
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