“O Espelho Mágico” de Manoel de Oliveira
“Esta semana, por exemplo, a estreia do mais recente filme de Manoel de Oliveira foi menos vista (e muito menos repetida) (na TV) que as cuspidelas (*) de alguns arruaceiros… Alguém falou em jornalismo cultural? Importa-se de repetir?” (* no Mourinho)
João Lopes, DN, 12mar06
Baseando-se (uma vez mais) num romance de Agustina Bessa Luís “A Alma dos Ricos”, Oliveira, tal como aconteceu naquela que é, em nossa opinião, a sua obra-prima, “Vale Abraão” (e o tempo eventualmente o confirmará), subverte o espírito do romance, centrando a acção em Alfreda (Leonor Silveira) tal como o havia feito ainda mais com a personagem de Ema - a Bovarinha, segundo Agustina, (de quem a escritora obviamente não gosta e Oliveira transformou num símbolo de uma certa revolta feminina contra o ambiente fechado e medíocre onde vivem muitas mulheres).
Em “O Espelho Mágico”, Oliveira transforma o discurso cheio de preconceitos da escritora - que recorre constantemente às metáforas e às frases que coloca na boca das personagens, para definir as suas ideias um tanto ou quanto elitistas e conservadoras, em imagens subtilmente irónicas sobre a decadência das famílias solarengas da região duriense.
Alfreda, uma mulher ainda em plenitude física, casada com um marido muito rico e mas muito mais idoso, cujo único grande interesse é a escola de música que instalou no solar (o mestre é o Maestro José Atalaya), contrata como motorista um jovem ex-passador de drogas, que por isso esteve alguns anos preso.
Frustrada, rodeada de padres, um dos quais, doutor em teologia (Michel Piccoli), que a convence de que a Virgem Maria teria sido afinal uma jovem filha de abastada família, passa a sonhar com as aparições desta, como forma de salvação pessoal, enquanto José Luciano (Ricardo Trepa), o motorista, de conluio com um antigo companheiro da prisão, agora transformado em providencial afinador de pianos (Luís Miguel Cintra), para resolver o que consideram ser uma tara da patroa, resolvem inventar uma aparição da Virgem, contratando para o efeito uma jovem, por quem o afinador se acaba por apaixonar…
As imagens, de grande beleza, como sempre em Oliveira, são por vezes cheias de sensualidade – os banhos de Alfreda na piscina ou no rio ou os ensaios com a falsa Virgem Maria.
Omnipresente estão os espelhos, através dos quais Oliveira, magicamente por vezes, filma as suas personagens femininas, e através dos quais elas se miram e remiram. Até a enfermeira, mulher aparentemente de outra condição, não resiste à tentação, numa das mais curiosas cenas do filme.
Leonor Silveira é a grande actriz de Oliveira, como já sabemos, magnificamente acompanhada pelos restantes. Mesmo que por vezes o discurso tenha alguma teatralidade, o que não é defeito, antes pelo contrário, num cinema em que a palavra é rainha, em longuíssimos planos fixos, e suponho que exija mais dos actores.
Gostei muito, embora possa não ser uma das suas melhores obras, mas não deixa de ser um magnífico filme, com a marca do seu autor, um dos grandes cineastas vivos, pela coerência das suas obras, e pela genialidade revelada nalgumas delas.
Amoreiras, 12mar06
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