Isidore Ducasse (1844-1870), que usou o pseudónimo literário de Conde de Lautréamont, teve uma existência fugaz (faleceu aos 26 anos), mas que ainda deu tempo para escrever uma obra-prima da literatura universal, “Os Cantos de Maldoror”, a partir da qual o encenador de hoje, construiu o seu espectáculo, publicado entre nós pela editora, também ela de algum modo marginal, a “Fenda”.
Mathias Langhoff, nascido na Suiça de língua alemã, em 1941, fez parte do célebre “Berliner Ensemble” de Bertold Brecht, a partir de 1961, dirigindo-o entre 1992 e 1993. Mas também esteve no “Volksbühne”, e trabalha em França há mais de 25 anos.
“Os Cantos de Maldoror” de Isidore Ducasse, é uma obra sobre a abjecção do Homem. Um grito de raiva, pela negativa, contra a exploração de que milhões são vítimas, para gáudio de uns poucos e dos seus serventuários sem escrúpulos. O retrato que Ducasse, Conde de Lautréamont, traça do Homem e da sua odisseia é pouco lisonjeiro para a raça humana, se não se atentar que ele é, acima de tudo é um brado de ira contra a burguesia reinante (ou a aristocracia), e contra o poder da Igreja, ontem e hoje. Não esqueçamos que Isidore Ducasse morreu um ano antes da Comuna de Paris, esse acto revolucionário do Povo da cidade, ao tomar o poder contra tudo e contra todos, acabando três meses depois na terrível chacina dos seus melhores e dos que os apoiaram, homens, mulheres e crianças, que haviam sonhado com um mundo diferente, sem desigualdades, nem injustiças (18mar1871 a 27mai1871).
Langhoff, retoma o tema, conseguindo atingir por vezes um nível como o da obra que adaptou, recorrendo a meios múltiplos para dar ainda um maior grau demencial ao discurso de Ducasse – o palco, num cenário por vezes de um realismo atroz – a cena do cemitério, o cinema, e a projecção das imagens nas cortinas transparentes que envolvem o palco – também com imagens actuais, que Langhoff filmou, dos marginalizados, dos sem abrigo, da Cidade Luz, na mesma rua onde aliás viveu Ducasse no século XIX, ou a barbárie do século XXI, com as Torres Gémeas incendiadas (mas por quem? Ou com a colaboração de quem? Passo decisivo para escalada brutal do imperialismo contra países em zonas económica e militarmente estratégicas do nosso planeta, curiosamente ambos governados por políticos “fabricados” pelo Ocidente - os Talibã no Afeganistão, Saddam Hussein no Iraque, que haviam chegado ao poder da maneira mais sanguinária e brutal, chacinando os que se lhe opunham, causando milhares de mortos entre as forças progressistas, e sempre com o apoio norte-americano. Crimes contra a Humanidade, que os tribunais dos poderosos (Tribunal Europeu) não querem julgar, mas que todavia não prescreverão.)
Os gritos de raiva e desespero, de Ducasse e Langhoff, continuarão a ouvir-se e são por vezes quase insuportáveis (alguns espectadores não resistiram mesmo e abandonaram a sala…).
Uma palavra para a extraordinária prestação dos actores, em especial, André Wilms (Estrasburgo, 1947), actor de teatro e de cinema (principalmente para dois realizadores de quem gostamos também muito, o francês Claude Chabrol, e o finlandês Aki Kaurismaki) e encenador.
Gostaria de fechar com uma frase que li na crónica de Gisela Pissarra (DN), dita (ou escrita) por Mathias Langhoff: “vejo a provocação das lojas de luxo do Boulevard Raspail (Paris), com sapatos a mil euros, e tenho vontade de partir a montra”. Também eu!
A frase, fez-me lembrar o ex-ministro da Economia do governo de Sócrates, o tal Pinho, que o Berardo quer empregar no “seu” museu no CCB (mas que é pago por todos nós), depois da saída atabalhoada do Parlamento, que disse aos jornalistas que tinha ido à feira de calçado, não sei de onde, comprar sapatos italianos, esquecendo-se da lamentável situação dessa indústria no nosso país e dos milhares de desempregados que dela resultaram e que, teoricamente, o ex-ministro iria defender…
Uma última nota: há quem queira pôr em paralelo, para defender um e criticar o outro, os trabalhos de Luc Bondy (“As Criadas”) e de Langhoff (“Deus Como Paciente”). Como muito bem escreve Miguel-Pedro Quádrio, na folha da sessão, citando André Wilms, “Langhoff e Bondy são antípodas estéticos”, “ora os festivais servem para isso mesmo: cruzar abordagens diferentes.”
Embora, eu possa preferir o estilo de um deles, ou possa considerar mesmo que podem não atingir o nível estético de outros grandes espectáculos vistos em Almada em anos transactos, como por exemplo “Peer Gynt”, em 2008, não deixo de os considerar ambos excepcionais.
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